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© 2017 Cristina Valadas

& Teresa Teixeira

2005

MATÉRIAS SENSÍVEIS

MATÉRIAS SENSÍVEIS

 

Ao longo da década de noventa do séc xx, e de então para cá, o trabalho deCristina Valadas foi progressivamente ganhando um sentido de afirmaçãoo e de maturação plástica e conceptual que lhe deu um lugar de primeiro plano na nova pintura portuguesa. Julgo que essa rápida clarificação de um lugar autónomo resultou, no seu caso, de dois vectores fundamentais que tentarei explicar.

Por um lado, e mais no que toca à sua dimensão conceptual ou histórica, da sua capacidade de retomar uma tradição lírica, essencial na arte portuguesa produzida entre as décadas de sessenta e oitenta, que o chamado “ regresso à pintura” nesta última não soube integrar; por outro lado a sua evidente competência em gerar um vocabulário expressivo próprio, habitado por uma série de signos que lhe deram a sua caracterização e autonomia expressiva no interior da qual a obra foi crescendo e desenvolvendo os sinais convictos de uma autonomia que em muito transcende os universos de mera ludicidade que alguns, antes, aí quiseram ver.

Quanto ao primeiro destes aspectos, deverei lembrar que foi José Luís Porfírio quem produziu o comentário até agora mais próximo do que julgo ser o fundo de formas que se exploram na sua pintura, referindo a sua relação com Ângelo de Sousa. Sobretudo aquela que se fez nesse momento em que o artista expôs um quadro, depois célebre na história recente da arte portuguesa, que se intitulou “Catálogo de formas ao alcance de todas as mãos”.

Passava-se isto em princípios da década de setenta e, desde então, outros foram os pintores do Porto que por aí passaram, em declarada continuidade: Rui Pimentel, Sebastião Resende, mas mais do que qualquer outro, Cristina valadas. Pequenas variações solares, órficas, a lembrar, como se disse, Klee ou Miró — como não? — mas também os Delauney e, sobretudo Sónia, revisitada por um gosto de referência a certas figurações primitivas. Cintilações breves, ínfimos sinais cristalizando formas ténues, simples, pouco mais que variações, de gosto quase musical. Arte decorativa? Decerto. Mas também sensível, económica, feminina.

Sensível, porque evidentemente achada numa raiz que dispensa a marcação insistente do racional e também porque perseguida numa espécie de falsa ingenuidade que é, nela, marca do feminino.

Económica, porque capaz de se mover internamente a partir de um léxico mínimo de formas que oscilam entre motivos da natureza e pequenas caligrafias sem significado, como se definissem uma espécie de escrita abstracta e no entanto reconhecível ainda no seu plano ideogramático.

Feminina, porque, como veremos adiante, a obra de Cristina Valadas assume uma caracterização profunda que decorre, julgo que evidentemente de um ponto de vista feminino sobre a sexualidade, as suas figuras e as suas formas de

sinalização plástica. Cactos, fontes, flores, folhas, motivos de uma espécie de herbário- chamava-se assim um livro que realizou com o poeta Jorge Sousa Braga- pessoal, secreto, que depois os tons de fundo, quase monocromáticos,

enquadram.

Onde isto e mais se faz sentir, porém, é na escala dos próprios quadros. O que os torna parentes daquelas flores de mistério e de volúpia de uma Georgia O`Keefe, cuja desarmante simplicidade foi motivo de estupefacção para muitos puristas

do movimento e da ideologia do moderno na sua época.

Assim se tornam- pelo uso sapiente desta economia- formas próprias da pintura. Não porque estão pintadas, mas porque se mostram, desde a nascença, como pintura. Cristina Valadas pertence decerto àquela família de pintores

contemplativos, que longamente experimentam, na quietude e no silêncio do atelier, as possibilidades de variação de uma forma.

Cristina Valadas insere-se, assim, numa espécie de movimento marginal- ainda que persistente- à eloquência sociológica e até imediatamente política das obras dos artistas seus contemporâneos de década , interessando-se antes por explorar uma zona de produção automática,- e daí também o que na sua obra se examina como motivo de evolução de uma escrita- aberta a uma libertação de energias inconscientes e à vertigem inesperada de se medir com forças que pertencem à

ordem do pulsional.

Nada, portanto, em que se torne exemplar um gesto, uma afirmação, ou o sinal de algum combate heroico: apenas um comentário breve, discreto, pessoal, à passagem célebre dos dias ou, como disse o poeta Eugénio de Andrade da

pintura de Ângelo, pintar de forma a que tudo seja só “ um puro dizer no tempo” Ora isto, que parece simplicidade, mas que á distância se percebe como sabedoria de gosto e de gesto complexo e denso nas suas muitas implicações, resultou, no caso de Ângelo- é nisso aliás que o parentesco entre as duas obras se exercita – numa capacidade para, recusando o sentido de saturação típico da pintura que então se fazia em Portugal, deixar largas margens de branco na sua pintura. Margens de alegria, digamos assim, porque nesses brancos ecrãs o espectador ficava livre de investir a sua própria capacidade, e a sua própria energia, no sentido de completar o quadro.

Por outro lado, ao retomar essa dimensão projetiva da pintura, essa abertura ao desenho e à sua potencialidade, às largas margens abertas e despovoadas de cor, saturando depois de cores primárias as suas figuras e arabescos, a pintura de Cristina Valadas abre-se para uma dimensão reflexiva, mesmo se lúdica, que importa igualmente analisar. O segundo dos fatores que enunciei, a propósito da rápida capacidade da pintura desta artista de se tomar visível na cena portuguesa passa necessariamente por aqui. Porque é no plano dessa dimensão reflexiva, desse jogo com elementos pessoais –e daí o seu lirismo- é que ela se torna portadora de uma expressividade singular.

Antes de mais, a pintura de Cristina Valadas não é, como pode parecer a um primeiro olhar, um mero campo de exercício formal, de sentido mais ou menos decorativos, mais ou menos simplificado, mesmo se a sua dimensão lírica não deixa que se evidencie imediatamente aquilo que lhe subjaze. Pelo contrário, ela tem uma dimensão expressionista, violenta até, que se esconde debaixo dessa aparente suavidade que a presença de alguns elementos quase diagramáticos leva a supor numa primeira abordagem, para se ir revelando aos poucos na potencialidade da sua carga expressiva e significante. Diria que a ordem dessa expressividade se poderá analisar sob o prisma de uma dupla e conexa presença: primeiramente através da observação da sua tendência para uma simplificação sígnica.

Depois, e em relação estreita com a primeira, o modo como nela se revela aos poucos uma outra ordem de significações internas, não imediatamente perceptíveis.

No que respeita à primeira, julgo que ela decorre dessa já referida dimensão expressionista, à presença e importância que nela aufere e peso do gesto, de uma gestualidade subtil que se vai modulando, como acontece em O`Keefe, na sua progressiva tendência para a simplificação.

Tendo o sinal sensível de uma escrita, as formas de Cristina Valadas parecem desprender-se de um peso representativo para habitarem antes um espaço ideogramático, ou pictogramático , á maneira das escritas orientais, e desde logo asseguram, em virtude disso, a criação de uma narrativa que escapa à tentação da representação.

Nessa medida o trabalho da artista está muito mais próximo do sentido claramente pós-moderno da pintura de um Keith Haring, por exemplo, para citar o caso de um artista em que a instituição da narrativa serve para desfazer a tentação do representativo, e mesmo se formalmente muito dele se distingue, do que daquele carácter neo-romântico, expressivo-representativo, da maioria da figuração típica da década de oitenta de que a artista claramente se demarcou desde início.

O gesto, nela, é assim coincidente com o signo, e não distanciado dele, aproximando-se, no plano do sensível, de uma consciência linguística que nada tem que ver com um sentido de representação. A pintura, no caso desta artista, jamais representa seja o que for precisamente porque nela se narram pequenas histórias que só a própria artista conhece, e cujo segredo permanece fechado ao seu espectador, mesmo se intensamente comunica com ele no plano visual.

Esta capacidade de reduzir ao signo, a sua figuração, constitui assim uma forma por excelência pós-moderna que a sua pintura assume de não contemplar o peso das coisas que se vêm mas antes de gerar o seu próprio universo de significação.

Tal como na pintura de um Joaquim Rodrigo, em que a figuração serviu sempre um propósito narrativo, a de Cristina Valadas avança também no sentido de fazer da pintura um dispositivo narrativo amplo, aberto a uma figuração de momentos, de registos sem significação imediatamente legível, mas no entanto presentes e potenciadores de uma narratividade. Tal os desenhos de Alfred Jarry em torno do Ubu Roi, por exemplo, exemplo que servirá para mais claramente o evidenciar.

Por outro lado, através desta economização do seu vocabulário construtivo, torna-se possível para a artista que a pouco e pouco vão ascendendo, com a força de signos poderosos, pequenos elementos de carácter simbólico ou tendencialmente simbolizador, que tendem a figurar (sem o representar) um universo de sexualidade intenso, expresso através de um automatismo que tende a escapar à corrente da consciência e a deixar que nele se projete uma linha de abertura à produção inconsciente.

É certo que, a um primeiro olhar, a pintura de Cristina Valadas parece habitada por formas, aparentemente simples, de flores, de frutos, de plantas. Mas, também, e por aí as coisas começam deveras a complicar-se, por corpos fragmentados, por vezes violentamente despedaçados – uma cabeça, umas mãos, restos de corpos – que configuram um sentimento do próprio corpo, o próprio, o do outro, que em nada alude à aparente tranquilidade que os jogos de cores e formas breves podiam parecer sugerir.

Esta fragmentação dos corpos, por um lado, por outro lado a presença subtil mas sempre indicadas dessas flores carnívoras, cujos esporos lembram figuras estilizadas de falos, cujas colorações carnais não vão sem que se evoquem sinalizações dos órgãos sexuais femininos, inscrevem a pintura de Cristina Valadas de outras chaves de interpretação e de significação que ainda mais a distanciam de qualquer conotação simplificadamente indiciadas às figurações amáveis de uma pintura estritamente formalista. É assim que, e uma vez mais, reforçam a sua associação a obras como e já referida de Keith Haring, cuja tematização abertamente homossexual e sentido de intervenção política foi já amplamente discutida na cena crítica americana como resultado numa atitude pós-conceptual.

Juntemos então agora os três planos de significação que venho sugerindo – respectivamente a presença insistente dos espaços brancos como formas de tornar presentes os ecrãs, a fragmentação dos corpos e a sinalização explícita, mesmo se subtil, de signos ligados à expressividade sexual – e logo a pintura desta autora nos aparece carregada de outros planos de reverberação no contexto português mais atual. Bem longínquo, desde logo, de quaisquer relações com um universo de pura ludicidade ou, muito menos, de um mero jogo formalista, e imediatamente muito mais atualizados e consoantes com uma tentativa de tornar sensível a matéria da pintura à presença de elementos que usualmente lhe estavam vedados no código modernista por defesa extrema de simples consequências formais.

Deixando-se penetrar pela relação intensa, e que já atrás também sinalizei, com formas de uma Georgia O`Keefe, cujas flores de carne foram também, no seu tempo histórico, modo de, diante de uma sociedade puritana, hipócrita, incapaz de assumir a caracterização aberta da sexualidade, a fazer circular como expressão viva, afirmativa, ainda que perversamente fantasmática, dos sinais do pulsional, mas vistos desde o ponto de vista de uma sensibilidade habitada pelo feminino.

A esta luz, que já foi, no caso de Cristina Valadas, anteriormente sugerida por Carlos Basaldua ( Pintor Argentino), em comentário sobre sua pintura, esta obra ganha uma espessura e uma densidade semântica que polarizam interpretações inesperadas. Esse universo quase delicado transbordaria, a ser isto verdade, num plano de violência expressiva e catalisadora de gestos emocionais fortíssimos que a sua candura só brevemente esconde.

Como os poemas epigramáticos de uma Emily Dickinson, como nos pequenos Hai-Ku que Jorge Sousa Braga tem convertido em português, de violenta ressonância erótica, um outro mundo de fantasias e de abertura ao obscuro estaria presente nestas telas que as cores vivas inundam de tonalidades alegres.

E sob esse registo de delicadeza expressiva, e sob essa aparente tendência para o mero contemplativo, abrir-se- iam os abismos de uma pulsação erótica veemente, de uma descarga inconsciente que transbordaria a sua sensibilidade lírica primeira sem a desmentir mas antes dela fazendo veículo de uma segura e eficaz comunicação daquilo a que a psicanálise chama o plano de projeção do fantasma.

Por isso os espaços brancos, a sua incidência de ecrãs, se torna tão necessária no universo construtivo na obra de Cristina Valadas. Não se trata, como se poderia ser levado a pensar, de recuperar uma mera referência formalista a uma certa tradição post-painterly, em que o branco da tela servia à exemplificação de sinais abstratos puros mas agora recheando-a de figuras arabescas mas, pelo contrário, inscrever essa herança de uma outra carga conceptual e formal que, apropriando-a, a desvia para explicitação de narrativas contemporâneas em torno da sexualidade e da expressividade tensa das suas relações tal como observadas desde um ponto de vista feminino.

Nessa medida a pintura de Cristina Valadas avança seriamente numa direção contemporânea, podendo ser aproximada, no seu plano de tematização, de casos singulares da melhor arte portuguesa dos últimos anos, como a Maria José Aguiar ou Helena Almeida, em cujas obras também estas formais subtis de figurar um desejo feminino ganham uma espécie de semiologia própria. E, sobretudo, porque tal como elas a sua obra plástica assume desde logo uma caracterização no plano da linguagem que desde logo a afasta de um mero exercício de oficina pictórica para o projetar numa dimensão de investigação de possibilidades da linguagem e do signo que são outros tantos sinais da sua dimensão atual.

 

Bernardo Pinto de Almeida

Abril de 2005

SETEMBRO 2001

IDEIAS FIXAS

CRISTINA VALADAS

 

A obra de Cristina Valadas caracteriza-se pelo uso expressivo da cor, por uma simplificação ao nível do desenho, pala importância da linha, numa figuração narrativa.

Linguagem de arquétipos, universal.

A autora recorre a elementos da fantasia, a animais fantásticos, á figura humana num contexto de imaginário infantil. Sendo estes elementos arquétipos da nossa identidade, tornam a sua pintura muito próxima e familiar. A arte surge para Cristina Valadas como uma “ necessidade íntima” , referida por Kandinsky. Daí a sua autenticidade. Recorrendo a uma linguagem feminina, não necessita de afirmar uma pretensa consciência feminina, utilizando-a como factor de di-ferenciação, reduzindo a criação a um discurso sobre o género. Daí a sua universalidade.

 

BICHOS

Na série “Bichos” surgem-nos bichos em interacção, interacção essa retratada em momentos cristalizados.

De realçar aqui, o factor tempo, permitindo a reconstituição narrativa de todo um conjunto de acções, em estórias oferecidas ao observador. Mas não são fábulas, não lhes é subjacente uma alegoria com mensagem moral. São narrativas com uma componente subjectiva, a pintora recorre a ales como elementos catárquicos, deixando a cada um de nós a sua reapropriação, recontextualização no nosso próprio imaginário.

 

 

Escrita ideográfica, sensualidade do sensorial.

Cristina Valadas utiliza figuras do reino vegetal, máquinas voadoras e a figura humana, como sinais recorrentes. Figuras essas que se metamorfoseiam em novas conjunções em cada obra, numa escrita ideográfica. Estas imagens, em composições de carácter bidimensional, representam pois ideias. A ideia de acção: mãos, braços, tracejados que interligam as figuras, que saem das bocas (sons); números (também eles sons). De movimentos: com as máquinas voadoras, ascensional, onírico. O corpo humano descrito anatomicamente, sublinhado ora o seu carácter funcional, ora os estados emocionais correspondentes a uma função específica. A sensualidade subjacente a toda esta obra: plantas que dialogam, exibindo a forma de obeliscos, ou então abrindo-se receptivas, em processos de atracção/repulsão, metáforas de elementos femininos e masculinos. A fonética presente em todo este ritmo sensorial. Uma vez mais, e embora resultem da projecção da artista, estas imagens são passíveis de uma dupla leitura, podendo ser recombinadas em novas frases pelo observador, permitindo uma pluralidade de interpretações.

Nas suas últimas obras assistimos a uma depuração da sua linguagem, nesse sentido mais essencial, traduzindo uma maturidade e domínio do discurso

 

Alexandra Beleza Moreira

Ideiasfixas n.º3 Setembro 2001

2000

IN AND OUT

Mais jovem, a pintura de Cristina Valadas teve a cor das férias grandes, ainda desdobradas sobre a adolescência, a distanciar-se. Oscilante entre o dia e o sonho, então. A seu propósito ir-se-ía falar Miró e Klee, justamente. Esplêndidas de alegria, as suas telas cedo conhecem, todavia, as flores da melancolia.

Com as mãos cheias de sol, ela concebeu, depois, imagens emergidas à tona da primavera: escorrentes de fibras luminosas, quanto marcadas por recortes biomórficos, viscerais e telúricos. A disporem-se, por vezes nos planos, com simulação de colagens caprichosas. Mas sem ignorarem a música da noite. Nem as poalhas de outonos crepusculares que chegavam envoltas em cintilantes memórias matissianas, deixando fluir a essência, mineral, vegetal ou carnal da vida toda da terra.

No entanto, consigo, houve também acordes de solidão. Que lhe timbraram evoluído imaginário, mesclante de ingenuismo e sabedoria artesanal. Ainda brincando mesmo quando sofrido, já. Embora cheio de luz que permaneceu.

Agora...agora a pintora continua menina. Amadurecida, contudo, por experiências duma doçura pungente. A exigir-lhe a depuração de intuições fulgurantes em reflexões apelativas a depurada limpidez formal e precisão executiva. Sem dispensarem o gracioso dum outrora próximo. Apenas o disciplinado. Na assunção ascética duma claridade e clareza, consignadas ao predomínio cromático e desenhístico do preto e branco, não exclusivo de ritmos sensuais. Que tão só, são transportados para a serenidade meditativa de mais amplos espaços de alva nudez, surgidos a par de composições de ouros-cinza.

Dir-se-ia que aí se fixaram formas fetais, desprendidas do mais fundo da condição feminina da pintora. Os quais querem ser corpos. Já o são, aliás. Bem os podemos olhar. Gravitam em superfícies despojadas. Mostram-nos algo de feridas sem sangue. Organizam-se por simulações narrativas de paradoxal silêncio gritante. Constituem figurações aberrantes duma incompletude ou fragmentação anatómica, a aproxima-las dum angelismo absurdo, duplamente visitado pela ternura e pela ironia.

Todavia, não há sadismo nenhum no novo imaginário de Cristina Valadas. Antes transpirante de sóbria gravidade. Contudo não antagónica de sua perene sensibilidade lúdica, filtrada ambiguamente, para a ênfase em densificada poética anímica, impondo-lhe urgência na conquista duma essencialidade plástica, a ser sinónima de imperativos de autenticidade existencial.

Dispensam, portanto, leituras psicanalíticas estas obras que nos são dadas a comentar. São essas frutos diretos de árduo trabalho, processado em busca de inéditas harmonizações contrapontísticas entre linha e a cor, que procurará afirmação de plena maturidade no máximo de simplicidade.

Para uma arte sentida revelação do mistério vitalista.

Assim na alegoria , na lograda singeleza da sua atual linguagem expressiva, Cristina  projeta-nos algo de redescoberta dos fundamentos de quanto nos habita, para além das aparências. Mas que raramente se pretende ou sabe dizer. Para consigo, se desocultar numa purificação estética ressoante de pureza ética. Que não ignora, o desejo sensual: evidenciável numa transparência de fragilidade, a intensificar-lhe a densidade comunicativa.

Dai, a emoção que não se sabe traduzir, perante a sua obra. Como se Cristina Valadas, afinal, buscasse figurar o amor, após ter sonhado os jardins do Éden. De onde todos nós fomos expulsos. Se é que alguma vez os habitou a pobre condição humana. Mas cuja nostalgia ela encaminha para sendas experimentais, alheadas de quaisquer dualismos culturais onírico-realistas, figurativos-abstratos, conceptuais-objectualistas . Ainda que, sempre, prosseguidas na postura frágil e pudica de quem sabe aproximar algo dum absoluto, já chamado de sagrado, mas permanecido com nome e rosto jamais descortináveis. Emoldurável apenas pela angustia noturna quando por esplendores aurorais, sempre efémeros, porém.

Por isso também, a vivência da arte reporta quem a pratique ao mito de Síssio. Cujo absurdo não se decide nas retóricas vanguardistas, na agressividade brutalista nem nos intelectualismos radicais. Diferentemente, implica-se na consciência do malogro dum eterno recomeço pelo esforço criativo de sucessivas gerações, desde a ancestralidade até á modernidade, marcado pela osmose da dor no humor amargo.

De fato, o ser artista significa a submissão ao non-sense de perenemente se procurar desvendar o sentido e horizontes do destino humano. Ou seja dum mundo outro, sabido nunca alcançável, e portanto, apaixonadamente desejável.

Assim são portanto, as atuais figurações de Cristina Valadas, simultaneamente angélicas e abortadas. Fecundadas nas entranhas da terra e pela luz duma crença sem nome. Dir-se-ia que a renascerem o referido martírio imemorial, testemunhado na frescura juvenil da sua pintura, feita aprendizagem e espelho do difícil ofício de viver.

 

Fernando Pernes

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